Podemos nos perguntar se as pesquisas mais recentes no domínio da religião popular ou da alfabetização não fazem surgir uma noção capaz de reduzir as dificuldades colocadas pela relação entre presente e passado. Essa noção aparece a propósito das interferências dos dois elementos culturais fundamentais que não cessaram de coexistir em nossas sociedades desde a invenção da escrita...
Nossas culturas são "mestiças", ao mesmo tempo orais e escritas, e o ritmo da sua história talvez se deva aos movimentos recíprocos do oral e do escrito, às alternâncias que os historiadores chamavam ontem de "decadências" e "renascimentos", regressões e progressos. A história das mentalidades segue as confluências e as divergências dessas correntes. Ela nos faz descobrir, então, o que subsiste das antigas oralidades reprimidas, de modo oculto, não consiente, seja sob a forma de sebrevivências camufladas, seja sob a forma de vazios, de enormes lacunas, em nossa cultura hodierna, em que triunfam as racionalidades da escrita.
O sucesso da psicanálise durante a primeira metade do século XX se explica sem dúvida pela resposta que ela dava a angústias individuais. O interesse que hoje se tem pela história das mentalidades parece-me um fenomeno do mesmo gênero, em que o incinsciente coletivo, beneficiado pelas culturas orais e reprimido pelas culturar escritas, substituiria o inconsciente individual de Freud ou se superporia a ele.
Mas o que é o inconsciente coletivo? Sem dúvida seria melhor dizer não-consciente coletivo. Coletivo: comum a toda uma sociedade em determinado momento. Não-consciente: Mal percebido, ou totalmente despercebido pelos contemporâneos, porque, é óbvio, faz parte dos dados imutáveis da natureza, idéias recebidas ou idéias no ar, lugares-comuns, expressões admitidas, impostas ou excluidas dos sentimentos e dos fantasmas. Os historiadores falam de "estrutura mental", de "visão do mundo", para designas os traços coerentes e rigorosos de uma totalidade psíquica que se impõe aos contemporâneos sem que eles saibam. Talvez os homens de hoje sintam a necessidade de trazer para a superfície da consciência os sentimentos de outrora, enterrados numa memória coletiva profunda. Pesquisa subterrânea das sabedorias anônimas: não sabedoria ou verdade atemporal, mas sabedorias empíricas que regem as relações familiares entre as coletividades humanas e cada indivíduo, a natureza, a vida, a morte, Deus e o além.
'A HISTÓRIA DAS MENTALIDADES'
Philippe Ariès